1.12.05
Nos 70 anos da Morte de Fernando Pessoa
Há um ano, neste mês de Novembro, sentindo aproximar-se a efeméride do seu desaparecimento, ocorrido a 30-11-1935, numa cama do Hospital de São Luís dos Franceses, em Lisboa, no Bairro Alto, escrevi eu aqui neste espaço, tão vasto e democrático, dois artigos dedicados a Fernando Pessoa, prestando dessa singela maneira uma homenagem pessoal à sua genialidade de poeta e pensador.
Admiti, então, que um ano decorrido, em 30 de Novembro de 2005, a circunstância de se comemorarem os 70 anos da sua morte, número redondo, apelativo, a efeméride devesse ser mais celebrada, quer pela Comunicação Social, quer pelas instituições culturais, sempre mais acicatadas pelas datas caídas em dezenas ou centúrias evocativas.
E, de facto, assim aconteceu. Hoje, durante todo o dia, na rádio e na TV, se falou de Fernando Pessoa, da sua obra e da sua genialidade. Realizaram-se recitais de Poesia, espectáculos vários alusivos ao poeta e a Casa Museu Fernando Pessoa programou para a noite uma exibição de multi-média sobre a sua vida e a sua obra.
Terminam também, neste ano de 2005, os direitos especiais de edição da sua obra, fazendo prever quebra significativa nos preços dos livros, que diga-se, estão caros, em especial os da editora Assírio e Alvim, que perderá aqui parte do seu presente filão editorial.
Com isso, aumentará certamente o número de leitores, estimulados pela imensa popularidade actual de Pessoa, o que contrasta com a quase obscuridade da sua passagem pelo Planeta, por Portugal e por Lisboa, em particular, que olimpicamente o ignoraram em vida.
Como é sabido, Pessoa arrastou uma existência exterior monótona, banal, rotineira, pela capital, ali pela zona da baixa pombalina, seu habitat natural, quase exclusivo, num limitado circuito de poucos quilómetros, todos os dias percorrido, entre as ocupações de empregado de escritório ocasional, de horário ligeiro, liberal, e a frequência de algumas raras tertúlias de café.
A Brasileira do Chiado e o Martinho da Arcada, sobretudo, eram os cafés da sua predilecção, onde os seus escassos amigos o encontravam para juntos trocarem opiniões e confessarem as suas preferências literárias e artísticas.
Quase se poderia reconstituir o seu deambular quotidiano lisboeta, tão regular e previsível se tornara a sua vida exterior. A outra, a do artista, a do poeta e pensador, essa, passava-se noutro plano, interior, recolhido, intensamente vivido, pleno de imaginação e produção, até altas horas da noite, acompanhadas, segundo se diz, a muitos goles de álcool, aguardente, parece, que lhe haveriam de minar as entranhas.
Nessa tumultuosas noites, escrevia sem parar, por vezes sem disciplina, desenvolvendo, em simultâneo, vários projectos, alguns depois lançados no mítico baú, em que posteriores literatos haveriam de exaurir a sua erudição pessoana, ganhando foros de doutores especialistas nas formidáveis elucubrações do poeta-pensador português, por excelência.
Com enorme ironia se comprova hoje a sua uiversalidade, quando há setenta anos morria quase incógnito, anónimo no mundo, conhecido e estimado apenas de um pequeno, mas selecto, grupo de artistas e literatos, jovens, na sua maioria, também pouco socialmente visíveis, para usar uma expressão de sabor moderno.
Continuar-se-á a falar dele por muitos e bons anos, a descobrir facetas ainda ocultas ou pouco exploradas da sua obra e analogamente da sua personalidade, tão fecunda quanto misteriosa.
É este o destino dos Génios, cujo espírito fecundo ultrapassa épocas e gerações, gerando sempre novas perspectivas, enriquecedoras interpretações, numa exegese quase bíblica, pela minúcia da pesquisa, multiplicada pela devoção incansável dos seus admiradores.
De que formas poderemos hoje honrar condignamente o seu nome, sem, contudo, saturar o leitor comum que desconfia de tanta oficial e oficiosa dedicação ?
Uma delas seria, certamente, promovendo o estudo, o culto e a difusão da Língua Portuguesa, a sua Pátria, como ele lhe chamou, a qual, para Fernando Pessoa, constituia autêntico objecto de veneração. Num dos seus escritos, chega a dizer que sofria como uma chaga no corpo qualquer atrocidade ou falta cometida às regras do bem falar e escrever a sua /nossa (mal) amada Língua Portuguesa.
Como sofreria actualmente este nobre espírito, ao assistir a verdadeiras barbaridades que contra ela hoje se cometem, até por quem estaria obrigado, por lei, por função e por missão, a defendê-la, a cultivá-la e a enobrecê-la.
A começar nos Jardins de Infância, na Escola Primária, todos os graus de Ensino deveriam tomar a peito esta tarefa de dar a conhecer aos alunos um idioma escorreito, nobre, dúctil e apto para as mais diversas utilizações. Logo em seguida, haveria que cuidar da preparação dos jornalistas-locutores da Rádio e da TV, sobretudo desta, pela sua esmagadora penetração social e imensa «força normativa», criando padrões comunicativos, quantas vezes errados ou malsãos.
Os responsáveis destes órgãos, se tivessem consciência da sua obrigação, neste domínio, há muito que teriam formado estruturas internas em que se criasse o hábito de zelar pela saúde da Língua, afinal, seu instrumento principal de trabalho, mais importante que os computadores e a panóplia de meios que a electrónica e a informática puseram à sua discricionária disposição, infelizmente, tanta vez malbaratados, por falsos critérios ou mesmo por ausência deles, guiados num vezo de puro mimetismo, por preguiça mental ou crassa incultura generalizada.
Com que afronta sofreria o nosso fino poeta-pensador, Fernando Pessoa, toda esta hodierna enxurrada de incúria linguística, poderemos imaginar por algumas opiniões que nos deixou em tantas páginas brilhantes de pensamento original.
Fiquemo-nos, por ora, com esta sua frase elucidativa :
« Quem não vê bem uma palavra não pode ver bem uma alma»
O amor, a reverência, com que Pessoa sempre tratou a Língua Portuguesa, ele que, com toda a naturalidade, pela educação juvenil e de adolescente que recebeu, em Durban, na África do Sul, onde fez toda a instrução primária e secundária, com notável distinção, poderia ter sido inglês, tendo escolhido ser português, deveriam incitar-nos a nós, falantes actuais dela, ao seu uso mais esmerado, ao seu culto mais elevado.
Deveríamos mesmo exigir de todos os órgãos de comunicação o escrupuloso respeito da sua natureza de símbolo maior da nossa identidade cultural, inquestionavelmente singular, original, que pode e deve integrar, sem se descaracterizar, contribuições próprias de outros povos, de base cultural diferente, mas que, por efeito da História, connosco se miscigenaram, enriquecendo uma Cultura que poderíamos, sem pretensão hegemónica, nem equivocados propósitos, apelidar de Lusíada, porque ficou, tal como a vida de Camões, pelo Mundo em pedaços repartida.
AV_Lisboa, 30 de Novembro de 2005
Admiti, então, que um ano decorrido, em 30 de Novembro de 2005, a circunstância de se comemorarem os 70 anos da sua morte, número redondo, apelativo, a efeméride devesse ser mais celebrada, quer pela Comunicação Social, quer pelas instituições culturais, sempre mais acicatadas pelas datas caídas em dezenas ou centúrias evocativas.
E, de facto, assim aconteceu. Hoje, durante todo o dia, na rádio e na TV, se falou de Fernando Pessoa, da sua obra e da sua genialidade. Realizaram-se recitais de Poesia, espectáculos vários alusivos ao poeta e a Casa Museu Fernando Pessoa programou para a noite uma exibição de multi-média sobre a sua vida e a sua obra.
Terminam também, neste ano de 2005, os direitos especiais de edição da sua obra, fazendo prever quebra significativa nos preços dos livros, que diga-se, estão caros, em especial os da editora Assírio e Alvim, que perderá aqui parte do seu presente filão editorial.
Com isso, aumentará certamente o número de leitores, estimulados pela imensa popularidade actual de Pessoa, o que contrasta com a quase obscuridade da sua passagem pelo Planeta, por Portugal e por Lisboa, em particular, que olimpicamente o ignoraram em vida.
Como é sabido, Pessoa arrastou uma existência exterior monótona, banal, rotineira, pela capital, ali pela zona da baixa pombalina, seu habitat natural, quase exclusivo, num limitado circuito de poucos quilómetros, todos os dias percorrido, entre as ocupações de empregado de escritório ocasional, de horário ligeiro, liberal, e a frequência de algumas raras tertúlias de café.
A Brasileira do Chiado e o Martinho da Arcada, sobretudo, eram os cafés da sua predilecção, onde os seus escassos amigos o encontravam para juntos trocarem opiniões e confessarem as suas preferências literárias e artísticas.
Quase se poderia reconstituir o seu deambular quotidiano lisboeta, tão regular e previsível se tornara a sua vida exterior. A outra, a do artista, a do poeta e pensador, essa, passava-se noutro plano, interior, recolhido, intensamente vivido, pleno de imaginação e produção, até altas horas da noite, acompanhadas, segundo se diz, a muitos goles de álcool, aguardente, parece, que lhe haveriam de minar as entranhas.
Nessa tumultuosas noites, escrevia sem parar, por vezes sem disciplina, desenvolvendo, em simultâneo, vários projectos, alguns depois lançados no mítico baú, em que posteriores literatos haveriam de exaurir a sua erudição pessoana, ganhando foros de doutores especialistas nas formidáveis elucubrações do poeta-pensador português, por excelência.
Com enorme ironia se comprova hoje a sua uiversalidade, quando há setenta anos morria quase incógnito, anónimo no mundo, conhecido e estimado apenas de um pequeno, mas selecto, grupo de artistas e literatos, jovens, na sua maioria, também pouco socialmente visíveis, para usar uma expressão de sabor moderno.
Continuar-se-á a falar dele por muitos e bons anos, a descobrir facetas ainda ocultas ou pouco exploradas da sua obra e analogamente da sua personalidade, tão fecunda quanto misteriosa.
É este o destino dos Génios, cujo espírito fecundo ultrapassa épocas e gerações, gerando sempre novas perspectivas, enriquecedoras interpretações, numa exegese quase bíblica, pela minúcia da pesquisa, multiplicada pela devoção incansável dos seus admiradores.
De que formas poderemos hoje honrar condignamente o seu nome, sem, contudo, saturar o leitor comum que desconfia de tanta oficial e oficiosa dedicação ?
Uma delas seria, certamente, promovendo o estudo, o culto e a difusão da Língua Portuguesa, a sua Pátria, como ele lhe chamou, a qual, para Fernando Pessoa, constituia autêntico objecto de veneração. Num dos seus escritos, chega a dizer que sofria como uma chaga no corpo qualquer atrocidade ou falta cometida às regras do bem falar e escrever a sua /nossa (mal) amada Língua Portuguesa.
Como sofreria actualmente este nobre espírito, ao assistir a verdadeiras barbaridades que contra ela hoje se cometem, até por quem estaria obrigado, por lei, por função e por missão, a defendê-la, a cultivá-la e a enobrecê-la.
A começar nos Jardins de Infância, na Escola Primária, todos os graus de Ensino deveriam tomar a peito esta tarefa de dar a conhecer aos alunos um idioma escorreito, nobre, dúctil e apto para as mais diversas utilizações. Logo em seguida, haveria que cuidar da preparação dos jornalistas-locutores da Rádio e da TV, sobretudo desta, pela sua esmagadora penetração social e imensa «força normativa», criando padrões comunicativos, quantas vezes errados ou malsãos.
Os responsáveis destes órgãos, se tivessem consciência da sua obrigação, neste domínio, há muito que teriam formado estruturas internas em que se criasse o hábito de zelar pela saúde da Língua, afinal, seu instrumento principal de trabalho, mais importante que os computadores e a panóplia de meios que a electrónica e a informática puseram à sua discricionária disposição, infelizmente, tanta vez malbaratados, por falsos critérios ou mesmo por ausência deles, guiados num vezo de puro mimetismo, por preguiça mental ou crassa incultura generalizada.
Com que afronta sofreria o nosso fino poeta-pensador, Fernando Pessoa, toda esta hodierna enxurrada de incúria linguística, poderemos imaginar por algumas opiniões que nos deixou em tantas páginas brilhantes de pensamento original.
Fiquemo-nos, por ora, com esta sua frase elucidativa :
« Quem não vê bem uma palavra não pode ver bem uma alma»
O amor, a reverência, com que Pessoa sempre tratou a Língua Portuguesa, ele que, com toda a naturalidade, pela educação juvenil e de adolescente que recebeu, em Durban, na África do Sul, onde fez toda a instrução primária e secundária, com notável distinção, poderia ter sido inglês, tendo escolhido ser português, deveriam incitar-nos a nós, falantes actuais dela, ao seu uso mais esmerado, ao seu culto mais elevado.
Deveríamos mesmo exigir de todos os órgãos de comunicação o escrupuloso respeito da sua natureza de símbolo maior da nossa identidade cultural, inquestionavelmente singular, original, que pode e deve integrar, sem se descaracterizar, contribuições próprias de outros povos, de base cultural diferente, mas que, por efeito da História, connosco se miscigenaram, enriquecendo uma Cultura que poderíamos, sem pretensão hegemónica, nem equivocados propósitos, apelidar de Lusíada, porque ficou, tal como a vida de Camões, pelo Mundo em pedaços repartida.
AV_Lisboa, 30 de Novembro de 2005